Opinião: O ataque dos tribunais ao acesso à Justiça e aos advogados
Artigo publicado no Conjur (13/09/2025): <https://www.conjur.com.br/2025-set-15/o-ataque-dos-tribunais-ao-acesso-a-justica-e-aos-advogados/>
Ao longo da última década, quiçá das duas últimas, observa-se a imposição de teses restritivas para justificar a dificultação do acesso ao sistema de justiça brasileiro. Tal fenômeno representa um obstáculo às "ondas renovatórias de acesso à justiça", conceito consagrado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que preconiza a remoção de barreiras, especialmente as econômicas, para que o cidadão possa efetivamente buscar a tutela de seus direitos.
Nesse contexto, um acórdão e uma nova tendência jurisdicional exemplificam o atentado tanto ao acesso à justiça quanto ao livre exercício da advocacia, merecendo breves considerações: o Acórdão 1.857.790 da 1ª Turma Cível do TJDFT e a crescente exigência de apresentação do Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS/Registrato) para a concessão da justiça gratuita.
1. O Entendimento do TJDFT e a Advocacia Privada
Vamos começar pelo Acórdão do TJDFT:
AGRAVO INTERNO NA APELAÇÃO CÍVEL. INDEFERIMENTO JUSTIÇA GRATUITA. DECISÃO UNIPESSOAL. HIPOSSUFICIÊNCIA. DECLARAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. PRESUNÇÃO RELATIVA. ESPECIAIS CIRCUNSTÂNCIAS QUE AFASTAM A ALEGAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA. CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO PARTICULAR, SEM INDICAÇÃO DE ATUAÇÃO PRO BONO. INDÍCIOS DE CAPACIDADE FINANCEIRA REVELADOS PELO CONJUNTO PROBATÓRIO. HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA NÃO EVIDENCIADA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. [...] 3. Contradiz a afirmativa de insuficiência financeira a contratação de advogado sem indicação de atuação pro bono. Destoa do padrão de razoabilidade próprio ao ambiente jurídico a alegação de carência de recursos financeiros que prescinde da assistência judiciária prestada pela Defensoria Pública ou por entidade atuante na defesa dos interesses das pessoas economicamente hipossuficientes. 4. Agravo interno conhecido e desprovido. (Acórdão 1857790, 07360633620228070003, Relator: DIVA LUCY DE FARIA PEREIRA, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 2/5/2024, publicado no DJE: 17/5/2024. Grifo meu).
Nesse caso, não se trata apenas da aplicação da relatividade da presunção de hipossuficiência, prevista no art. 99, § 2º, do Código de Processo Civil, mas de um claro atentado à advocacia privada e ao direito de escolha do cidadão. O entendimento da 1ª Turma Cível do TJDFT é inequívoco: a mera contratação de um advogado particular "contradiz" a declaração de pobreza. Ou seja, ao optar por um profissional que não seja membro da Defensoria Pública, o jurisdicionado atrai para si a desconfiança sobre sua declaração, esvaziando a presunção legal e impondo-lhe um ônus probatório ainda maior.
Tal interpretação ignora o disposto no art. 99, § 4º, do CPC, que afirma expressamente: "A assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão de gratuidade da justiça". Mais do que isso, a decisão colide com a própria Constituição Federal, que em seu art. 133 estabelece o advogado como "indispensável à administração da justiça", não fazendo distinção entre o público e o privado.
É claramente compreensível indeferir o benefício àqueles que ostentam sinais de riqueza incompatíveis com a alegação ou quando for comprovada a falsidade da declaração. A hipótese do acórdão, contudo, cria uma presunção indevida contra os advogados. Realizar o malabarismo semiótico de que uma parte representada por advogado particular possui, necessariamente, capacidade financeira para arcar com as custas processuais é desconsiderar a realidade de inúmeros profissionais que, para compor sua carteira de clientes e sobreviver no competitivo mercado de trabalho, atuam com honorários reduzidos, pro bono ou sob a cláusula quota litis (contrato de risco).
Numa realidade paralela em que todos os advogados conseguissem manter sua carteira cobrando, no mínimo, a tabela de honorários da OAB, tal presunção talvez fosse condizente. No entanto, na realidade em que vivemos, observamos a concessão de justiça gratuita para um desembargador dessa mesma corte em um processo milionário[1]. Não se promove aqui um juízo de valor sobre a concessão do benefício ao magistrado, mas sim uma reflexão sobre porque a mesma alteridade não é aplicada àqueles que não gozam de tanto prestígio, em uma aparente violação ao princípio da isonomia.
2. A Exigência do CCS/Registrato e a Violação de Direitos
Seguindo adiante, comentemos a nova prática de alguns tribunais, notadamente o TJSP, que consiste em condicionar a análise do pedido de justiça gratuita à apresentação do Cadastro de Clientes do Sistema Financeiro Nacional (CCS/Registrato). Esse documento, que detalha todos os vínculos do cidadão com instituições financeiras, foi concebido como uma ferramenta de proteção contra fraudes, como a abertura de contas ou a contratação de empréstimos por terceiros.
Não obstante sua finalidade original, o Poder Judiciário enxergou nesse documento um controverso potencial: a verificação da hipossuficiência. O TJSP parece ter iniciado uma escola, uma vez que a exigência desse documento se faz cada vez mais presente, inclusive no TJDFT. Apresentar o contracheque, as despesas e as dificuldades financeiras que assolam a grande maioria das famílias brasileiras já não é o suficiente. O cidadão deve agora expor todo o seu relacionamento bancário, muitas vezes de forma desnecessária e desproporcional.
Tal exigência tangencia a violação de direitos fundamentais, como a privacidade e o sigilo de dados (art. 5º, X e XII, da Constituição Federal), regulamentado pela Lei Complementar nº 105/2001. A medida pode ser considerada desproporcional, pois existem meios menos invasivos para a verificação da condição financeira. Ademais, a prática parece ignorar os princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD - Lei nº 13.709/2018), como o da finalidade e o da necessidade, que determinam que o tratamento de dados deve se limitar ao mínimo necessário para o cumprimento de suas finalidades.
Parece um prato cheio no banquete já conhecido em que a refeição são os dados dos jurisdicionados, agora facilmente acessíveis e armazenados em bases jurídicas, muitas vezes sem o devido controle sobre sua segurança e utilização futura.
Em suma, as duas práticas analisadas, sob o pretexto de zelar pelo erário e coibir abusos, acabam por criar barreiras injustificadas, penalizando o cidadão e aviltando a advocacia, em um claro retrocesso ao princípio constitucional do amplo acesso à justiça.
João Paulo Molina Sampaio
Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 21. ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 17. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
[1] STJ concede justiça gratuita a desembargador em ação de R$ 2,18 mi. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/432018/stj-concede-justica-gratuita-a-desembargador-em-acao-de-r-2-18-m. Acesso em 09/09/2025